quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Nas cordas do Infinitesimal

TEXTO A SER ENCENADO

Eu nasci para ser filho, num momento em que o sangue e o susto desiludiram fundo toda expressão da versão moderna. Ganhei corpo conforme o enlatado policial perdeu força e fiquei discutindo a nossa dislexia para parir ficção científica. Mas eu sempre desconfiei do motivo: Na emergência de lambuza do precário, o tecnologicamente correto nem passa pelos sulcos dos nossos bolsos e o real é tão urgente que tiramos dele, e não dos chipes, tudo o que a nossa mentira tem de fantástico.
Meus ossos deixam de envergar ao mesmo tempo em que eu deixo de ser dúbio: troquei festividades pela mobília e me arrumo na distração do dom familiar. (Tira a camisa, começa a fazer flexões de braço) E quem disse que se esforçar para ficar gostoso não tem a haver com isso? (faz mais algumas flexões e pára) O fato é que o desenvolvimento das forças produtivas (apertando o pau) é que não deixa de ser prioridade. Mesmo nessa terra de ossos moles (olhando triste/ou contente pro pau)
Mas vamos pensar nisso. Toda a inspiração conversa com essas outras coisas, né? Eu mesmo, me pretendo agricultor, cineasta e go-go-boy. E disso não tenho vergonha, ao contrário, tô me estudando e por enquanto, essa é uma das certezas que tenho pra fazer um caminho de elevação da alma e das outras coisas que têm que se manter elevadas nessa história sem começo.
Alma: é o vazio que a gente põe jujuba. Coisas doces e de cores industriais com cheiros iguais, mas gosto diferente; aposto que ninguém nunca viu o pé de anis, e o azul da bichinha só se encontra em planta exótica de Macapá. Esse vazio funciona como um saco de peido. Sabe aquele redondo de borracha com uma lingüeta na ponta. Você senta e ele peida. É isso. Um troço que a gente enche de desnecessidades só pra ver o efeito que tem quando a gente esvazia.
O que conta na relação com a alma é o fato de sentir tremelique quando ela fica sem nada. Nas cordas do infinitesimal. Nos olhos secos da espera velha. Nesse ponto, além das cores sintéticas, é que a gente põe pensamentos. Já que todos eles também partem da vontade de enchermos nosso saco com a lógica das desnecessidades que dão frio na barriga quando a gente perde. Ter alma é ter perda, e ter desejo de preenchimento aleatório.
Serafim, (pega um garfo e uma faca amarrados um ao outro, faca com a ponta para um lado, garfo apontando para o outro) você parte disso também não é (olhando pro serafim, que é a própria faca no garfo)? desse sentimento de que espetar e cortar são duas coisas que não acontecessem juntas, é sempre uma ou outra. Nenhuma tarefa se dá por completo, e a gente tenta espetar o bife rápido o suficiente para que quando formos virar o serafim para o lado da faca, para cortar a carne, o garfo ainda esteja segurando, fincado.
É a constante tarefa da sobreposição do tempo-espaço. E outra, temos que ser intermediados pelas ferramentas, o serafim, pra lidar com essa carne. A carne-mundo. É impossível usar só as mãos, e é proibido ter dois serafins. Entende, Serafim? Você é meu único serafim, cada um tem um e todos nós vivemos a neurose imperceptível de que um dia vai dar tempo de cortar o bife antes de arrancar dele o garfo.
Não há articulações, não há mecânica composta num chão de um núcleo só. Acho que precisaríamos de mais de um mundo ao mesmo tempo pra ter mais de uma ferramenta. E aí precisaríamos que esses mundos se fundissem, para que, com o serafim de um mundo, pudéssemos espetar o que o serafim do outro mundo corta.
Por isso o cinema. A noção artificial - como as cores das jujubas - de que; com corte, montagem e não-linearidades; uma hora dessa eu consigo cortar meu bife. A noção de que - como na teoria da relatividade – eu vou conseguir ir e voltar quantas vezes for no tempo e no espaço. Comer guizado de mundo no mundo meu. Que já é (um) outro mundo, meu mundo de “película epidérmica pulsante”. Palatável e insonoro.
Então vou recolhendo imagem. Já guardei mais de 12 quilos em bites de tudo o que vi na vida. Tenho certeza que consigo juntar um churrasco de gaivota, um enxame de brasas no vento e uma plantação de ziploc, tudo, tudo num sonho digital armado. Violento e atemporal. E então rodo. Sobreponho a invenção à experiência. E na experiência invento os meus não-vetos. Desproíbo no corte dos serafins os movimentos das nossas leis legíveis.
Um dia andei bastante. Andei quase meu tempo todo - que meço a partir do tanto de vinho que bebo. E vi o quanto de mato acabou. Gravei. Senti o baque que é se encher de tempero - aliás tempero é a parte enjoativa das desnecessidades que juntamos em nosso saco vazio, a alma, lembra?; Gravei também o enjôo do tempero - não? Explico, olha, rock é tempero, corte de cabelo é tempero. A cor do brilho dos olhos dos outros é tempero - tudo isso enche o saco, enjoa e acaba. O tempero desse dia foi a política. Enjoei, senti o baque e gravei o baque. Cinema.
Aí cheguei onde eu tava indo, era uma clareira de concreto no planalto dos planos práticos e psíquicos oficiais do país. Vi tanta gente de farda que choquei, comi e gravei. Exemplos sempre têm três figuras, né? Com isso consegui com um dia dar vazão pra explicação do que é o que chamamos de música - a ordem e progresso em que conseguimos colocar o amor. Música. Até bandeira já concluiu isso por aí. Mas vi que era isso mesmo. Por isso que aqui fazemos tanta música.
Fico preocupado de o amor também ser tempero. Mas agüento, tento ver como um tempero suave, ou como um dos temperos que é mais perene - alho por exemplo, não sei. Tem gente que chama amor de aferração mental, neurose – essa mais buscada do que imperceptível.
Disso, história antiga, cartas cartas. Como no fim, o amor é música e a música é a regra matemática do ponto de amar as coisas. Me propus a ficar pensando as relações do amor com ele, as relações de amor. (estralo os dedos, muda a música) go-go-boy. Nada além do suor que escorre a carne na imagem em que o desejo se codificou. Corpo. Corpo. Roupa. Pouca. Fui ver as caras desses caras de dentro da boate. Fiquei olhando e dançando de mentira, mas bem gostoso. Acreditei. Bobo. Quando vi, já tava no terceiro romance. Todos assim. Suor. Líquido que leva a gente embora porque escorre e não acumula nem pára. Só seca. Amor suor da noite. E me encantei acreditando que a frieza do néon não ia deixar secar o meu sonho molhado. Treinei o batimento pra ficar mais leve, parar se fosse o caso, só pra não ir embora meu último litro, meu amor desejo de cara boa, de cara dura, quente. Não adianta. Como com a alma, só que ao contrário, no amor cada copo d’água alimenta a esperança, de que um dia, a gente vai estourar e virar no todo um amor só, líquido, corrente, água quente de amor pra sempre. E palmas para o ecstasy.
Pois é, mas tudo ficou tão seco, tão virtual e esperançoso, que eu tava com medo mesmo da água me estourar. Fiquei cagão. Comecei a faltar com a pista. Comecei a criar barriga e fui largando meus amores rarefeitos de vapor. E não aprendi nada.
Agora racionalizei, ando com termômetro. Se a temperatura de ebulição é boa, se a pressão é a certa, se a densidade cabe nas minhas predisposições: matematicamente me jogo de cabeça. Salto ornamental. Espero, nessa, acertar no cálculo quando o meu amor mesmo passar. Enquanto não acerto, às vezes fico amargo, giro meu marcadorzinho (como se estivesse apertando um parafuso na cabeça) pra promoção, em ocasiões propícias, pra queima de estoque e aí me esbaldo com emoção alheia e compro sentimento sem entrada até não ter mais oferta. Lógica dos benefícios individuais maximizada. Parece mesmo que isso aqui é pra jogar fora o talher e meter a boca, beber sem sentir gosto.
Bom, mas tem me segurado. Isso, em dia de semana pelo menos. Acalmei e amenizei, abundesmamente.
Fui ser sobra do que seria, síntese de mim mesmo. Sendo quase árvore, arredei-me, terra a dentro, semente. Agricultor. Uma espécie de pendrive processual, um memorando. Virei, em pílula, toda informação que eu tinha sobre mim. Me encadeei numa sentença. Frasifiquei. E daí a origem da religião: um acordo mínimo, tácito consigo, de tentar pôr em cinco palavras o sentido de todas as coisas do mundo. Uma coisa pequena que se jogada em qualquer outra sempre me dará a mesma certeza. Uma semente que brota em qualquer terra. De onde nasceria sempre a mesma árvore forte, fruto e mãe de toda a minha certeza. Eu mesmo. Agrobusiness mental.
Fui ser tão pequeno e tão simples, de tal modo, que seria aceito por qualquer contexto. Abdiquei das inteirezas e na pinta das maioridades externas me pequenifiquei, corrigi os meus relevos me enterrando inteiro no chão, até o meu eu escondido ficar retinho de tão dentro da terra que tava. Minha aparência outra de seco e semente. Voltar ao barro. Agricultor. Terra plana. Enterrado em pé, apoiado nas orelhas de tudo que virou chão antes de eu me semente. Fiquei surdo, nada, a não ser vibração que o peito de detecta, me avisava.
Aí eu pude inventar tudo, fui esquecendo de luz, esquecendo de como o mel escorre sempre por onde a gente não espera, esquecendo dos montes de anilina, da floresta, do código civil e do alumínio que envolve a comida, da comida. Eu me semente pra ficar ser ali. O germe de um movimento de surpresas pertinho do lado de cima, escondido o tanto só que a terra precisa pra me cobrir, esquentar. Ficando simples fui esquecendo. Aí religião, lembra, cinco palavras que cabem em qualquer enredo: Pra poder ser só surpresa.
(contando com os dedos de uma mão cada palavra) Aí, eu pude inventar tudo.

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